9ª QUADRA - SETEMBRO DE 2004


A MARGEM DA VIDA DE UM TROPEIRO
Autor: Cristiano Ferreira Pereira
Intérprete: Cristiano Ferreira Pereira - Amadrinhador: Luiz Cardoso

Tropeiro das noites curtas...
na ronda das tropas grandes.

Orelhano...
de qualquer sorte.
Mas...
Assinalado pelo destino,
com as forquilhas da lida
e... as palmatórias da vida.

Era um desses índios
calados, ensimesmados,
mas de alma doce
e prosa mansa.

Hijo de la Banda Oriental,
Dom Nicácio Cardozo
desde piazito se fez tropeiro,
sovando bastos pelos interiores
da pampa grande,
cruzando trilhas,
corredores sem fim...
levando tropas que não eram suas
com o zelo de que o fossem.

De riso largo...
- ainda novo - foi bom ponteiro,
guiando tropas com precisão.
Era dele, também,
a vez de chegar antes nas pousadas,
juntar lenha... fazer fogo...
recostar cambonas e
preparar o amargo.
Vez por outra,
ainda lhe tocava a carneada.

Já maduro
- capataz de tropa -
povoou os cuentos da peonada
e se fez lenda entre tantos
pelo cuidado e dedicação a seu ofício,
como que o fossem entalhados... no cerne.

O seu:
“- Era boi!... Era boi!...”
se estendia pelo campo,
encontrando o horizonte,
de contraponto ao sopro do vento
e duetando...
...com a ponte-suela do freio
do seu preparo antigo.

Um aba larga cobrindo
a longa melena negra,
sombreando seus traços
de ameríndio,
o campomar sempre pronto
para guapear tormentas,
uma coqueiro de botar respeito,
um par de esporas com detalhes de allá,
o doze braças - de agüentar qualquer tirão -
um tirador com flecos e,
qual bandeira, ruflando ao vento,
o colorado por sobre o peito
...eram os trastes deste qüera.

Montava um flete picaço,
estrela luzindo à testa...
...também um baio de tiro.
Dois pingos florões da pampa,
dois tronos pra um Monarca!
Nos pêlos... a noite e o dia
...num simbolismo terrunho
da lida que não folgava!

Sempre fechava um crioulo
- bem despacito -
antes de voltar pra ronda,
como parte de um ritual.
Picava o fumo e antevia...
a lida que se seguia.
E - por certo – lembrando
de algum cambicho,
mostrava o largo sorriso
...no brilho terno do olhar.

Bandeava uma tropa como poucos
- maestro de rara sabedoria -
orquestrava os movimentos
da tropa...
dos companheiros...
e até os da cuscada!

Mas...
num dia em que o vento norte
- agourento - tropeava nuvens,
e o rebanho branqueava o pano
na costa de mato
na curva de um corredor,
com um laço forte
num sobre-lombo certeiro...
...a morte - “unha-de-gato” -
sacou o taura do lombo
do seu picaço!...

Sim...
ficou ali, num repente...
Hoje...
capatazeia as nuvens
na tropa de alguma chuva,
deixando o sorriso largo
nos recuerdos de quem o viu,
um rastro de bom parceiro
e, n’algum cambicho... um vazio.

Tem horas em que o vento
parece que traz o som do seu:

“-Era boi!... Era boi!...”
“-Eraaaaaaaa...”

É certo...
Dom Nicácio
não monta mais um picaço,
nem o baio pêlo do dia...
Emponchado de poesia,
é lenda em roda de mate
e estrela luzindo à testa
das noites aqui do sul!

CAMPEIRA MULHER
Autor: Egiselda Brum Charão
Intérprete: Egiselda Brum Charão - Amadrinhador: Paulo José D. Pires

Feito as filhas de Tupã
fui trazida pelos ventos.
Sou a mulher pioneira,
sou peona galponeira,
seiva da estirpe campeira.
Cresci dormindo ao relento
desta terra abagualada.
Fui sinuelo pela estrada,
demarquei novas fronteiras.

Ao giro dos cata-ventos,
vi surgir a raça nova
para as horas do futuro.
Em louvor a esta terra,
fui grito dos esquecidos
em dias de desalentos.
Nas tristes noites de calma,
brotavam, do subconsciente,
velhas rezas avoengas
sofrenadas dentro d’alma.

Também fui mescla de sangue
da pura cepa caudilha
e no estertor farroupilha
fui amparo das trincheiras
forjando a estampa guerreira
timbrada ao sol curunilha.

Fui molde da fibra altaneira
levando no peito a bandeira
dos entreveros de guerra.
Me temperei nas invernias,
suportei brabos mandados.
Nas inquietas calmarias
- ao retinir das esporas -
fui as prosas galponeiras
no lusco-fusco da aurora.

No chimarrão, à tardinha,
amarguei a solidão.
Num fado imaginário
fui esteio para as casas
- tapera no coração -
E nas contas do rosário
rezei as dores sofridas,
chorei misérias sentidas
na dura faina da vida.

Meu suor foi vertente rasa
em dolente singeleza.
Andei minguando asperezas
pelos confins do rincão
e trago a face marcada
pelo sulco das tristezas,
- como coxilhas lavradas
ao sol-a-sol do meu chão.

Tranquei meu rumo solita,
levando o pago nos tentos.
Ao calor do fogo votivo
semeei o sangue nativo
da nova raça aflorada:
- numa tristeza pungente
do barbarismo primitivo. -

Vivendo em muitas eras,
fui saudade nas esperas,
entre arado, gado e fogão,
plantando novas quimeras
pra uma nova geração.
Fui mulher guapa, na essência
e na alvorada do pampa
me transformei em querência
pela força das minhas mãos !


GUARITA
Autor: Carlos Omar Vilela Gomes
Intérprete: Loresone Barbosa - Amadrinhador: Valdir Verona

Como chegou, ninguém sabe,
Ninguém viu nem se importou...
Apenas passos cansados
E um silêncio que restou.
Mira longe, pisa perto,
Sente o destino nas mãos...
Anseios de céu aberto
Pulsando no coração.

Os pés se firmam no morro,
A alma tenta voar...
Os sonhos pedem socorro
Beijando a boca do mar.
Não houve mais os tormentos
E o mundo dizendo não...
Escuta apenas o vento
E o som da rebentação

Os olhos enxergam longe,
Além do bem e do mal...
Buscando um tempo perdido
No templo do litoral.
De cima a vida é mais vida,
Mas também pode não ser...
Num momento aos pés bem firmes,
No outro, quem vai saber?

Seus olhos buscam o céu
Nos olhos claros do mar...

Quantos segredos nunca revelados,
Quantas paixões e temporais humanos...
E quantas cruzes foram carregadas
Na “via crucis” do passar dos anos.
Tantas peleias, tantas despedias,
Tantas histórias que não vai contar...
Quantos lamentos vertem desses olhos
Que hoje se perdem na amplidão do mar.

Os barcos recortam o horizonte,
Parecem que são anjos pequeninos..O mar é um véu de paz neste momento
Chamando pra cumprir o seu destino.

As ondas batem fortes pelas pedras,
O sal das lágrimas desaba do penhasco...
E encontra o sal de quem, embora cristalino,
Está prestes a ser feito carrasco.

A torre alta é um altar de sacrifício
Pra quem, agora, quer se dar ao precipício
Como se fosse dar as mãos ao criador.
Que ironia! Pois quem busca esta saída
E por ter dores abre mão da própria vida
Leva consigo a dor mais triste pra onde for.

A guarita hoje é o palco dessas dores...
Um teatro sem platéia ou refletores
Num monólogo calado pelo ator.

De onde vem tanta mágoa?
Porque se turva a visão?
Porque buscar pelas águas
Alento pra o coração?
Porque desistiu de tudo?
Porque cansou de lutar?
Porque procurar o céu
Nos olhos claros do mar?

Talvez seja porque o céu
É só um espelho do mar.


ORIGENS
Autor: Nenito Sarturi
Intérprete - Pedro Júnior da Fontoura
Amadrinhador: Valdir Verona

Eu poderia ter nascido longe,
do outro lado do vasto oceano,
nas savanas da África Central,
no tórrido deserto do Saara
ou nos confins do Continente Austral.

Ter vindo ao mundo na terra dos monges...
Lá no Tibet, na China, na Mongólia,
num lindo dia do Leste europeu,
sob a brisa de um Mar Egeu
ou nas Planícies de uma Patagônia.
Talvez pudesse ser acalentado
entre as begônias da Mesopotâmia.

Talvez pudesse ter crescido livre
na amplidão dos Montes Apalaches,
ser um pagé em uma tribo apache,
ser um cacique entre os Astecas,
ou ser um príncipe na Ilha de Creta.

Porém não foi nesses lugares todos
que tive a graça de enxergar o sol...
Foi num lugar aonde o arrebol
é mais intenso do que nos demais,
foi nesses campos mais meridionais,
num catre simples, junto aos pajonais
deste Brasil, que nos ufana tanto...
Foi neste canto, onde o desencanto
não tem mais força do que a nossa fé,
onde um igual pode ser o que é,
sem falsos lumes e luzeiros tolos.

É um lugar abençoado e livre,
é uma Querência que, por graça, tive
pra dar alento ao meu primeiro choro.
É um pedaço do Brasil Sulino
que, por capricho do Jesus Menino,
deu-me à luz e me acolheu em coro.

É aqui que achei a minha companheira,
é aqui que vivo e que criei raiz,
é aqui que eu tento amar e ser feliz,
é aqui que crio os filhos para o mundo.

É aqui que nutro o amor mais profundo
pelos amigos, que adornam a vida
e que, um dia, irão me dar guarida
quando eu me for para não mais voltar.

Eu poderia ter nascido longe,
às margens quentes de um Rio Ganges,
entre as geladas terras da Sibéria,
sob os silentes montes do Himalaia
ou nas áridas estepes da Nigéria.


Eu poderia ter virado gente
no deserto do Atacama, com seu tédio
ou nos confins da grande Cordilheira,
às margens tristes do Danúbio Azul,
junto aos conflitos da África do Sul,
em meio às guerras do Oriente Médio.

Porém o Grande Arquiteto do Universo
quis que eu nascesse, pronto para o verso,
neste torrão que tanto amo e canto...
Quis que eu brotasse, como por encanto,
num pastiçal de trevos e flexilhas,
sentindo o aroma das coxilhas
da Pampa gaucha, sem patrão nem doma...

Onde o Minuano, por bagual, reclama
com uivos fortes seu melhor quinhão.
Onde cultuamos a seiva mais pura,
onde podemos buscar nossas curas,
nos abraçarmos com toda a ternura
e onde posso te chamar de irmão.

Eu poderia ter nascido longe,
Lá nas Rochosas dos americanos,
nos ricos castelos dos romanos
ou entre os nobres da era feudal.

Eu poderia ser condecorado
tal qual um conde, após ter voltado
de uma Cruzada do “bem” contra o “mal”.
Talvez pudesse ter sido aleitado
em berço de ouro, ou ser um soldado
das hostes bravas de um Gengis Kam.
Talvez pudesse ter sido ungido
por sacerdotes do antigo Egito,
ou ser um líder, sem baixar a crista,
ser um guerreiro, ao qual bastasse um grito,
pra ser seguido na maior conquista.

Eu poderia ter nascido longe,
em qualquer canto do nosso planeta,
pois quem escolhe qual será o gameta
que vai gerar a nossa frágil vida?
Qual o lugar desta terra sofrida,
e tantas quantas razões escondidas
Regem as rédeas do nosso destino?

Mas foi aqui que, com respeito à raça,
foi neste chão que Deus me deu a graça
de me encontrar, qual um torcaz que passa,
reconhecendo as plagas de onde vim...
É aqui que sonho em construir meu mundo,
é aqui que eu quero me plantar bem fundo
quando chegar a hora do meu fim.


PORQUE RAZÕES NASCEM OS VERSOS
Autor: Sebastião Teixeira Correa
Intérprete: Carlos Aurélio Weber
Amadrinhador: Fernando Graciola

As rimas xucras dos versos, se retesam na garganta
Quando canta um pajador;
E o poema toma forma, quando a expressão da poesia
Vibra em igual sintonia, com a alma do criador

Quando o lenho da guitarra se achega ao peito do guasca,
E o timbrado das seis cordas
Parece brotar das veias, na extremidade dos dedos;
Corre um tremor pela espinha e se prolonga nos nervos,
Batendo o frio da coragem, sobre a quentura dos medos

Assim nasce cada verso,
Quando a sensibilidade aflora nos sentimentos;
E a cada gota de rima que o poeta da à luz,
Todo verso se traduz na aura desse momento

Por isso, às vezes, a dor que os versos tristes refletem;
Ou, sentimentos de amor, que plasmam no coração
Quando as paixões nos boleiam.
Outras vezes é o protesto, marcado por injustiças,
Ou mesmo, histórias sangrentas quando dois bravos peleiam

Eu já cantei o amor,
Quando, na aurora dos anos, senti o gosto dos lábios
E o calor terno do corpo da prenda linda e trigueira;
Meus versos tinham o frescor da brisa calma da tarde,
E o perfume mais suave das flores da pitangueira

E já cantei toda a dor de quem sofre
pela ausência,
Quando a china bate as asas,
deixando o rancho vazio;
A solidão toma conta, o inverno
desce e se acampa,
E o coração sente frio

Cantei a saga campeira
Daqueles que desfraldaram a
bandeira das batalhas,
Pra honrar o solo gaúcho, com fibra,
garra e entono;
Que do lombo dos cavalos
lançaram gritos de guerra
Pra mostrar que a nossa terra
era pátria e tinha dono!

Cantei o êxodo do campo ao
ver vazios na invernada,
E a porteira escancarada, por onde as tropas de gente
Foram passando, silentes, prá buscar novas searas,
Chorando triste aos horrores
Ao longo dos corredores, onde
a dor se faz presente

Cantei a amarga saudade do
campeiro, na cidade,
Cevando as ervas caúnas no
degredo das favelas,
Montando potros de sonhos, lançando armadas já tortas,
Em chifres de rezes mortas,
pelos bretes das ruelas

Cantei o triste gemido do campo
virgem, rasgado
Pela fúria de um arado puxado
pelo trator,
Dos ervais nobres, nativos, que se tornaram cativos,
Morrendo pelas clareiras,
Porque nas mãos tarefeiras só
há golpes de desamor.

Cantei a paz que existia nos verões e primaveras,
Quando o viço nas taperas surgia só com o sereno,
A ternura das abelhas buscando o néctar puro,
Pra fazer o mel escuro das flores do sarraceno

E ao pé do fogo-de-chão, pelas noites dos Bivaques,
Entoei, junto aos que cantam, meus poemas de esperança
De que um dia a igualdade e a justiça que queremos,
Encontrá-las ainda iremos num sorriso de criança
Em Quadras de Sesmarias, cantei o verde dos campos
Que sobraram nos porongos quando se seva algum mate,

E as lanças ensarilhadas à espera de outros guapos
Com sentimentos Farrapos, pra impeçar novo combate

Campeei rimas de diamante,
Pra desafiar a dureza, e escrever sobre a aspereza
Do aço da Pedra Moura, meus versos de amor e paz;

E hei de compor mil poemas, pra cantar todas minhas penas,
Juntando aos versos dos outos,
Pois versos são como potros, que não se deixam domar

Se algum dia, um dos meus versos for encontrá-lo, meu parceiro,
Te peço que, por primeiro, lhe mostre hospitalidade,
Pois cada verso é um pedaço desta emoção que me inspira,
E, de diamante ou safira, cada letra e cada verso
Tem dimensões de universo, pra rimar com liberdade

Então, parceiro, estas rimas, retesadas na garganta,
Hão de ecoar, quando cantas, nos sem-fins dos cafundós,
Pra que o xucrismo dos versos despertem nas clarinadas
Escramuças de potradas, brotando pátrias em nós!!!


QUANDO UM PÁSSARO DEIXA O NINHO
Autor: Loresone Barbosa
Intérprete:Liliana Cardoso - Amadrinhador: Airton Pimentel

Hoje; meus olhos órfãos de lágrimas
Desprenderam-se do eterno outono
Desprezaram horizontes largos,
Despiram-se de dor e madrugadas
E em fim sepultaram mágoas
A sete palmos do sonho.

Pois a estrada é um descaminho
Pra quem andando sozinho
Reponta um fio de esperanças,
Que já ganharam distâncias,
Que já migraram do ninho.

Infundada é a dor da saudade
Que sempre esbarra na tarde,
Que não se sabe onde pulsa,
Faz que se cala – soluça –
Faz que dispara – me invade –

A minha vida é assim:
Pessoa que passam por mim,
Olhos que enxergam não vêem
Divinas preces pra alguém
Que desprezou nosso fim.

Agora; é reinventar a vida,
Redescobrir o caminho,
Vestir coração e alma
Co’a sobra do teu carinho
E enrigecer de ternura
O meu amor que figura
Num palco que tão sozinho.

Pois não importa o que passa
A vida segue a seu gosto,
Sempre amanhece no posto,
Só minha aurora é sombria,
Preciso acordar no peito
O sol que brilha discreto
Na escuridão do meu dia.

Dia que fora tão lindo!...
- mais claro que a lua inteira –
pleno de luz quimeras,
onde habitaram teus olhos
mais belos que a estrela d’alva,
mais ternos que a primavera!...

ainda vejo teu sorriso
quando recorro a janela
querendo te ver chegar,
mesmo sabendo que as asas
que te levaram das casas
desprenderam meu rumo,
esvaziaram meu sonho
e já não sabem voltar.

Neste peito desusado
Onde o amor não envelhece,
Cuido da plole que cresce
Sem descobrir teus afagos,
Me recomponho em silêncio,
Disfarço a dor da saudade,
Que sempre chega nas tardes
Sem me trazer teu abraço.

Que o tempo pinte o meu rosto
Algum resto de sorriso,
Que a brevidade da vida
Me ensine recomeçar,
Que siga batendo forte
Meu coração egoísta
Que não divide a visita
Da solidão que me invade.

Não digo que será fácil
Pra recompor nosso ninho,
Se falta lua em meu céu
Sobram injenuos sorrisos
Pra clarear meu caminho,
Pois quem nasceu pra voar
Não pinta rastros no chão,
O meu pássaro partiu;
Abriu as asas voou
Repartiu tudo que sou
Mas deixou-me os passarinhos!..
.


RAPSÓDIAS PARA UM SENHOR DE BARCAS E RIOS
Autor: Moisés Silveira de Menezes
Intérprete: Andréa Weber - Amadrinhador: Fernando Graciola

O rio, santuário andante
Fascina, atrai e trai
Espírito em movimento
Vivenda de vida e morte
Um mundo, um mundo em si
Une, divide, divino
Por vezes calmo, sereno
Por outras se atira rude
Extravasando as barrancas
Na prazerosa volúpia
De fecundar as planícies
Para as lavouras de arroz

Fora bem mais que um irmão,
Do rio, fizera um amigo
Sabia como ninguém
Pesqueiros, vaus e peraus
Monge de rumos e remos
Tinha tino, tinha dom
De entender os mistérios
Das vogas e grumatãs
No seu diário mister
De buscar por guavirovas
Pitangas e guabijús.

Entendia quando e porque
O verdor da mataria
Se revestia de adornos
Ao mutar das estações
E o florir das corticeiras
Quebrava a monotonia
Das cores e dos perfumes,
Festim de flores e frutas
Pra gurizada ribeira...
Invasão nos fins de tarde
Pra pendurar em caniços
A prata dos lambaris.

Barqueiro, sábio, profeta
Transitava ao natural
Pelos caminhos costeiros
Segredos de mato e rio,
Rude ciência primitiva
De observar ao redor.

O vento empurrando o rio
Águas girando moinhos
Moinhos rodando rodas
Rodas movendo a vida
Nesse estranho labirinto
Entre o viver e as visões.

No barro, princípio e fim,
Pesado e lerdo monjolo,
O tempo sempre a rodar
Lentamente seus ponteiros
Girando ao sabor do vento,
Bordara entalhes perenes.
Buscara sempre a consciência
Da relação homem – tempo,
Sabia um mundo à montante
Um outro no rio abaixo
Distância... rio se esgueirando
Saudade... a curva do rio.

Vira diluir-se al longe
Amores em desencanto
Ilusões de melhor vida
Campeiros em retirada.
Muitos sonhos viu voltar
Desandando derrotados,
Deserdados desamados,
Outros, sumiram, se foram...
Estradas também são rios
Travessia, caminhada
Invisível Aqueronte
Por onde a vida navega.

Certo dia, hora incerta
Brotou do meio da bruma
Quase fantasmas silhueta
Barco e barqueiro esperados.
Aquele que cruzou muitos
Compreendeu a horas grande...
Cruzaria o rio de sempre
Agora por derradeiro,
Pois, temprano percebera
Remo firme, rumo certo...
O rio é filho do tempo
O homem está de passagem.


ROMANCE DO DOMADOR
Autor: Colmar Pereira Duarte
Intérprete: Valdemar Camargo - Amadrinhador: Henrique Schol

Foi domador, como tantos,
mas domava como poucos.
Do berço trouxera a sina
de ginete e “saidor”;
porquê ginete se nasce
- o demais,
a vida ensina.

Nunca deixou balda ou manha
num cavalo que domasse.
E, embora até gostasse
que o potro escondendo o rastro
chairasse a língua no pasto;
ou que procurasse um jeito
de se bolcar velhaqueando,
para sair caminhando,
sem o soltar do cabresto
- jamais procurou pretexto
para exibir sua destreza.
Pois, sabia com certeza
que o que é bom
já nasce feito!

E costumava amansar
com cuidado e com paciência
- que nisso está toda a ciência
dessa arte que é domar.

Tironeava com o jeito
de quem conhece o que faz
- pois não é puxar demais
que deixa um bagual “sujeito”!

Sempre andava bem montado,
em carreirada ou rodeio,
e mostrava orgulho nisso.
Tinha pingo pra um passeio,
tinha pingo pra um serviço.
Índio sério e caprichoso
para as pilchas e os aperos;

Alegre, bom companheiro
- sempre, em qualquer circunstância-
sabia dar importância
ao menor dos compromissos.
Tinha a sorte linda e mansa,
até que a vida, passando,
cambiou seu rumo,
chamando com cincerros de esperança.

Então se alçou, a ave migratória.
Deixou os pagos, pra mudar a história,
com o destino apresilhado aos tentos.
Seu pala branco, obedecendo os ventos,
foi prolongando aquela despedida;
insinuando nesse adeus,
tão lento,
que se afastava para toda a vida.

O coração por sinuelo-
apartou-se de seu chão.
Como tantos, de outros pelos,
que até em buçais de cabelo
cabresteiam a ilusão!

Foi sofrenando a saudade
das potreadas lá de fora
e se habituou, sem demora,
aos costumes da cidade.

Tirou dos pés as esporas,
não montou mais a cavalo.
E, já no primeiro pealo
que o agarrou sem dinheiro,
foi despilchando os aperos
que, com orgulho, luzira.

E até parece mentira
que esse taura dos arreios,
que foi touro nos rodeios,
respeitado na querência,
se enredasse na cidade,
lonqueando necessidade
pra retovar a experiência.

E quando era chegada a primavera
- a passarada toda em cantoria,
entoando um hino de louvor ao dia,
como a cantar o encanto de viver-
exilado em seu rancho.

Voltava, então em sonhos,
a querência.
Cruzando o pampa imenso em florescência,
abria rumos, pisoteando orvalho.
Respondendo, outra vez, como um soldado,
ao clarim de alvorada do trabalho.
Via- ferido a cascos e arado-
sangrar fartura o pago, à sua gente,
nas cargas dos rodeios de seu gado,
nas trincheiras da terra e da semente!

Num desses momentos sentiu,
sem querer,
que um “duro de queixo” podia chorar.

Num brilho crescente de alvorescer,
as lágrimas quentes
nasciam a tremer,
vertidas mansitas de seu coração.
Qual gotas de orvalho
a rolar, cristalinas,
correndo...
estacando na ponta das folhas...
pendendo, luzindo...
pingando no chão...

Contam no pago,
que no outro dia uma silhueta
avultava ao longe,
contra o clarão da aurora que surgia.

Era outra vez, a ave migratória
que despertara com a primavera;
Retornava ao rincão que Deus lhe dera
e que nunca apartara da memória.
Ia curando, já no esquecimento,
as feridas do próprio coração.

Apenas guardaria na lembrança,
Para o resto da vida, esta lição;
Aprendera nos bretes do arrabalde que
o que nasce com alma de campeiro
- como a calhandra-
canta em liberdade,
mas- por gaúcho nomais-
no cativeiro vai definhando...
e morre de saudade!


ROMANDE DO PICAÇO ESTRELA
Autor:Guilherme Collares
Intérprete: Patrocínio Vaz Ávila - Amadrinhador: Guilherme Collares

- Que Deus maldiga a memória
do índio Pampa bandido
que matou o meu cavalo!...

... rumina Sargento Antonio
- cavalaria gaúcha -
engatilhando a garrucha
de uma vida que se esvai...

- Que Deus maldiga a memória
do índio Pampa bandido
que matou o meu picaço!...
... e matou a própria fome
co’a carne do meu pingaço
nos chacos do Paraguai.

Até recordo do dia,
no acampamento em Corrientes
- e já faz quase três anos -
que chegou a cavalhada
do tal de Venâncio Flores
- o caudilho do Uruguai:

Nem encerraro a manada
e eu já tinha cobiçado
aquele picaço estrela...
... com brilhos de pontezuela
fulgurando no olhar.

Eu lacei no manguerão!...
Eu mesmo sentei as garra!...
Ele queria uma farra
e eu agüentei o repuxo!...
Pois todo potro velhaco
dá um cavalo de respeito
pros arreio de um gaúcho!
- E agora?... Sem meu cavalo?!...
O que é que vai ser de mim?
Des’que acampamo por perto
da tropa dos argentino,
co’aqueles índio bandido
- e já vai pra mais de mês -
que eu passo as noite de em claro
co’a soga do meu picaço
na mão – que é pra não dar vez!

- E na noite de anteontem
eu me dormi e, pra sorte,
a soga se me escapou
e a mi’a desgraça se fez!

Campeei e, no outro dia,
já achei o estrago feito:
A buchada... as pata... os resto
- faltava até a cabeça! -
do meu picaço mentado...
... que foi sangrado e carneado,
e foi assado e comido
como se fosse uma rês!

- La pucha!... Que banditismo,
malvadeza e judiaria
que um encontra pela frente!
- Comer carne de cavalo,
não mal comparando, é o mesmo
que comer carne de gente!

E quanta andança fizemo!...
E quanta lança trançamo!...
A nossa carga era um dano
na infantaria inimiga!
E o General – há quem diga –
comparando a nossa sorte:
- Que o meu picaço era um forte
e eu – um anjo da morte –
lanceando vida por vida!

Dei queixa pra’o General
do sumiço do cavalo...
Nada podiam fazer!...
E des’que entremo no Chaco
e morreu a cavalhada!...
- Um gaúcho sem cavalo
é mais uma sepultura
plantada longe do pago
que viu a gente nascer!

- E agora?... Sem meu cavalo?!...
O que é que vai ser de mim?

Um tiro corta o espaço...
... assombrando a noite grande
do acampamento aliado
nos ermos do Paraguai...

E encontram Sargento Antonio
- cavalaria gaúcha -
com a cabeça caída
e um fio de sangue a jorrar...
Nos olhos o mesmo vítreo
cristalino e luminoso
daquele picaço estrela
... com brilhos de pontezuela
fulgurando no olhar.

SOB UM DESERTO DO SUL
Autor: Vaine Darde
Intérprete: Antonio Barbosa - Amadrinhador: Lucio Yanel

O que direi de nossa estirpe
Para os que, um dia,
Nos buscarem na história?
Para os homens do futuro,
Que, à margem de um rio extinto,
Escavarem nas areias,
Desse deserto indefensável
Que agora principia?

O que direi aos arqueólogos do amanhã
Que quiserem decifrar nossa vivência
Entre as cinzas de um fogo de chão
E objetos carcomidos
Do antigo cotidiano
De um galpão desenterrado?

A ciência lhes dirá
Que o ermo estéril onde pisam
Já foi campo ao sul da América,
Que sobre o solo de areias escaldantes
Outrora os rebanhos prosperaram,
Outrora as lavouras se expandiram
Sob a égide de um povo
Que alicerçou o seu domínio
Sobre o lombo do cavalo.

O que direi a esses homens
Quando ao tempo indagarem:
- Mas o que eles fizeram? -
Direi que uma estirpe de guerreiros,
Entre o rebanho e a lavoura,
Tanto cultivou a ambição
Que enlouqueceu pela ganância...
E no desvario de mais colheita,
E mais colheita e mais colheita,
Esqueceu-se do futuro...

Direi que envenenamos: primeiro a terra,
Depois os açudes, e as sangas, e os rios, e
o mar?
Direi que tanto exploramos os campos
Até que a pampa estéril se vingasse
Com vazio e solidão?
Que a próspera cultura eqüina dos gaúchos
Feneceu pelo descaso,
Pela sede desvairada de progresso.
Ou direi que, outra vez,
O fator humano foi a causa
Da tragédia da paisagem?
Talvez esses homens do futuro,

Um dia, encontrem, em suas buscas,
Um livro de Caetano Braun,
Uma guitarra de Yanel,
E não entendam que um povo
Provido de tal sensibilidade
Fosse, também, capaz
De tal violência com o campo.

Com certeza, quando os séculos acumularem
Camadas e mais camadas de
areia sobre a pampa
E o deserto reclamar sua posse
sobre o sul,
Em alguma escavação os restos
de um galpão
Falarão, por nós, aos que vierem,
Dirão de nós toda a verdade
Nos tonéis de inseticida...
Nas latas de herbicida...
Nos laços...
Nas esporas...
Nas armas...
E, até, os nossos ossos falarão por nós...

Eu direi, apenas, nos meus versos
Que fomos também contaminados
Pelo mal do nosso tempo.
Por essa força natural da evolução
Que passou despercebida aos
nossos olhos
Até que os recursos naturais se
exaurissem
E, nem com os milagres da ciência,
Nem com máquinas poderosas
Conseguimos reparar todo mal
que cometemos.

Direi apenas que, apesar de pastoris,
Que apesar dos poemas e milongas,
E de todo romantismo das bailantas,
Nós também fomos perversos
E cultivando nossos sonhos
Destruímos nossa casa...
Que, assumindo a herança
De bárbaros invasores,
Contribuímos para o fim.

Tomara que, um dia,
O futuro não nos negue
Um lugar em seus museus!


SOBEJOS DE UM ANDARENGO
Autor: Luiz Lopes de Souza
Intérprete: Valter Vieira Ribeiro - Amadrinhador: Antonio Wilmar de Moura

Seu peito também tapera...
Sua alma também ruína...
Da estância, vagos sobejos
Na palidez da retina...

Do rancho o último esteio
Pendido a favor do vento,
Qual um guardião alquebrado
Rondando a fúria do tempo...

Na quinta que foi jardim,
Horto de esmero capricho,
Se lastravam urtigas,
Guanxumas e carrapichos.
A roseira já morrente
Com seu mister de mimosa,
Ofertava aos algozes
A sua última rosa...

A erva de passarinho
Parasitou o seu trono,
Na copada centenária
Do avoengo cinamomo...

Na lagoa da canhada,
Uma garça cismarenta
Reflete suas mágoas
Se espalhando ao revés...
Por onde as lerdas traíras
Desconhecendo anzóis
Brincavam com aguapés...

A tronqueira de coronilha
E as pedras da cercania,
Na longa saga da espera,
Já peleavam vacilantes
Contra a interpérie das eras...

Os entes queridos...
Sim... estavam todos ali...!
Numa campa decadente
Desprovida de vigília,
Adornada pelo pasto
E flores de maçanilha...


Foi por eles que partiu...!
Um dia já sem ninguém
Saiu a esmo, errante...
Mas o tempo que é mutante,
Sulcou vergas em seu rosto
E jogou neve de agosto
Em sua melena de andante...

Por isso hoje voltou...
Voltou pra entregar ao pago
Seu corpo judiado e só,
Queria morrer alí...
Pelo seu chão diluído
Em leiva terra e pó...

...nessa noite morreria, certamente...
a tapera se fez silente
na ressonância escura,
o grito do urutau
forjou ecos na lonjura,
preludiando a despedida
num dueto de amargura...

...e começou a morrer, lentamente...
com a sombra madrugueira,
com o lufar do sereno,
com o piscar da boieira...
morria feliz por estar ali!

Olhando o céu da querência...
Onde a lua tristemente
Chorava orvalho dourado
entre as brumas do poente...

... e morreu...
quando já amanhecia
e, no vazio se ouvia
o arpejo manso do vento,
o lume grande da aurora
mangueava a última estrela
no ermo do firmamento...

sequer um berro de touro...
sequer um tropel de potro
sequer marulho de arroio...
...só silêncio na tapera...

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