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14ª QUADRA - SETEMBRO DE 2009

01 - NA TAFONA DO SEU DUGA
Autores: João Antônio Marin Hoffmann, Sebastião Teixera Correa
e João Adauto da Silveira
Intérprete: Wilson Araújo
Amadrinhador: Márcio Costa

Prás bandas do palmital, onde o sal tempera o chão,
Nas manhãs frias de julho a lida desperta o sol,
Pr’alguns Joões que a vida, não foi assim generosa,
Pois, nesta plaga arenosa, quando opções se consomem,
Se não vinga outro plantar, mandioca por tradição,
Faz matar dos seus ( a fome ).

A carreta corta o luto, da madruga que deu cria.
Mandioca vazando as tampas, cerca o destino final,
A Tafona do seu Duga, lá prás bandas do Caconde,
D’outro lado do canal. . .

Planta no chão, o rodado, uma espécie de roteiro,
Que o cusco Fiel, parceiro, do paradeiro escolado,
Bem de perto, garroneava, num tranquito cadenciado. . .

Sete sóis de farinhada, que empeçavam no canal:
Lavagem do material prá “facilitá” o capote,
Onde os pares frente-a-frente, parecendo um ritual,
Num trabalho à quatro mãos, raspam da mesma raiz,
Sua pelagem mais grossa, deixando limpa a mandioca,
Para o ciclo da moagem. . .

- João, me prense a massa ralada, recolha o suco escorrido,
Pois do tal, o contenido, garante o polvilho azedo,
Do qual pitadas certeiras, numa receita caseira,
Ressuscita antepassados, nas broas, bijus, cuscus
E demais assemelhados. . .

- Uma fornada já foi, veja se o forno está à ponto.
Solte o brasino no campo, depois encangue o carvão,
Bem ajojado ao timão, sem te olvidar dos antrolhos,
Sobreposto sobre os olhos, prá que o boi não fique tonto. . .

Caramba como faz frio nestas noitadas de julho. . .
Amadrinhado à fonalha, monto a cama de pelêgos,
Porém, meu desassossego, é um coração que aos pinotes,
Parece fugir do peito, quando lembro da Palmira,
“Trêsontonte” uma menina, e agora já tomou jeito. . .

Faz mais viva as esperanças, minhas preces sussurradas. .
Não há de ser nada, um dia, não nego, falo a verdade,
Confesso pr’essa guria, da insônia que me judia,
Noite adentro, madrugadas. . .

A lide traz alvorada na ordenança do pai:
- João, me faça uma peneirada, desta fornada que sai,
Separe esta Caroeira, prá tratar a criação,
Que a mesma mesclada em água, ala puxa!
Nem te conto, como vinga a bicharada. . .

Velha tafona silente, que minha infância guardou,
Do teu galpão despojada, restou-te um canto de sala,
Deste museu que te herdou. . .
Do velho ofício, ( uma arte ), herdaste tão só invernadas,
Ponchadas de mil recuerdos, que o moderno cabresteou. .

Velha tafona de lidas, que foste parte da minha,
E de tantas outras vidas. . .
Teu silêncio grita alto ao Rio Grande de bombacha,
- Cadê meu rancho galpão, carreta e boi tafoneiro?
O velho capote a dois? Onde o flerte já sabido,
Num jogo de vai-e-vem, foi o correio de quem,
Do verbo era desprovido. . .
Roçar discreto de mãos, palavras mudas trocadas,
Romances nascendo assim, destes sim, sem dizer nada. . .

Caso meu grito c’o teu prá conclamar o meu chão:
- Vamos cultivar o velho, não se “olvidar” do passado,
Mesmo quando precisado de cambiarmos pelo novo. . .
Prá que raízes não morram, e preservemos memórias,
Que é parte da nossa história, bem maior do nosso povo. . .



02 - A QUEM EMBUÇALA OS SONHOS
Autor: Cláudio Silveira
Intérprete: José Cláudio Pereira
Amadrinhador: Cláudio Silveira

Enquanto um “hornero”,
Faz bombeador da cabeça de um palanque,
(na liturgia antiga de chamar o dia em “tempraneras” clarinadas)
Antônio Estarrabachél, “empeza” a lida com o sentar crioulo de basteiras,
(num bulido “muy” sestroso, remarcado do bocal...)

Ateia as primeiras luzes de um crepúsculo pampeano
com as centelhas da alma,
na ascendência terrunha que desliza
em suas veias e artérias...
pois a lida lhe crismara “changueador”
bem antes de sua própria vida existir;
talvez porque o pai (naqueles tempos de antanho)
fundeava trilhas compridas e recruzava corredores e estradas
pra transpassar horizontes
com tropas largas e cavalhadas de muda por diante...

...Campeia a volta...acha!...
e entrega uma forquilha costumeira dos recaus...
ao trote...sai pechando as barras de um novo dia nos encontros do bagual...
no “bocó” juntos aos arreios a “corneta” (tesoura buena)
de folhas bem “templadas”...
pois no “Don Feliciano” “hay” matraquear de comparsa...

No caminho para a estância
o pensamento revoa...
tremula revolto topando o vento,
tal qual a crina dos “pajonais” na vastidão da planura,
e as franjas de um “palita” castelhano, drapejando,
com cismas de rancho e bandeira...
nesta hora até o silêncio se cala,
para ouvir a tessitura dos cascos,
o trino campeiro das rosetas das esporas,
e o rangido de um basto (sovado a “bolcadas” dos baguais que encilhou).

As léguas que o apartam,
vão mostrando pouco-a-pouco entre o serenal
as velhas cicatrizes do chão (fundeadas do entrecruzar dos tantos,
que viveram prisioneiros da mística dos caminhos...)
hoje marcas solitárias,
que findam na ausência das marchas e tropéis,
à mercê das erosões das chuvas e dos areais...

O tempo despatriou campeiros
do trono realengo das garras,
para catequizar os índios pavenas
paridos no campo a fora
com outras lides e crenças...
maculou o sangue centauro e potreador
com a “santa benção do futuro”
e fez sulcos das trilhas tropeiras
para semear agruras aos que encilhavam o lombo xucro do próprio destino;
dissipou a imagem barbaresca e campechana
dos bravos homens que habitavam os rincões,
até emangueirá-los nas trampas dos arrabaldes,
junto à penumbra dos submundos...
lugar que resta aos que nascem com a sina de habitar galpões,
encilhar ventenas e recorrer invernadas,
mas por suas efêmeras ilusões
definham atraídos pelo ouropél dos luzeiros das cidades...

...depois das léguas...
as retinas nebulosas de remembranças e distâncias,
trocam as luzes fogoneira da memória,
pela visagem sombria da solidão da porteira...
...apeia...sem pressa...(com porte bélico e com o bagual mais sujeito)...
“A tranquera” dá seu “buenas!” num ranger dolente,
tal como vóz de um passado longínquo,
ainda ecoando pelas várzeas e canhadas...

...por fim a estância...
a lida e a vida que forjou a si e os seus...
o sustento e a forma de torná-los imortais,
diante das muitas cruzes e taperas,
ou quem sabe quimeras
de seu mundo não findar jamais!?...

...a clausura de um fundão

dá-lhe a impressão de estar salvo!...livre!...
então um riso lhe aflora a face
bem quando as vozes da peonada pelos ares
saem de encontro a seus tímpanos e sentidos...
por um momento o som que ecoa
das mangueiras e galpões
“lhe transporta” a tempos e lugares perdidos,
sem saber como os perdeu...

...E neste mesmo instante olfateia e pensa:
-enquanto o verde das paisagens
se fizer pendão das minhas esperanças,
e potrilhos recém lambidos cambalearem entre o macegal,
eu hei de calçar “potreras” para alumbrar auroras
com estrelas cantoras,riscando o pêlo dos fletes
e embuçalando os meus sonhos!


03 - AS SETE FACES DO POEMA

Autor: Moisés Silveira de Menezes
Intérprete: Érico Machado Bastos
Amadrinhador: Marcus Morais


A face nua primeira
da pampa longe do gado,
distante de seus cavalos
antes das lanças e espadas.
O ancestral pescador
caçador e coletor.
Seu sustento,sua vida
advém da natureza,
harmoniza com o meio
exploração racional.
Um viver sem sobresaltos
natureza - homem - tempo.

A face dos guaranis
casa una , plantadores,
sociedade organizada
pela chefia dos clãs.
Divina Mãe-Natureza
retribui com abundância.
Talhados em pedra bruta
facas, machados ,ponteiras
pras lanças de caça e pesca
gravuras indecifradas
arte rupestre que dorme
sob o sol do Itaquatiá.

O jesuíta traz na face
calmaria de lagoas
novas crenças, novo Pai.
Trovões ocultos,castigos
são todos filhos de Deus
e iguais perante ele
sob o signo da cruz.
Um discurso igualitário
entre rosários e espadas,
30 povos viram sete,
sete sinos dobram hinos
pelo horror do Caiboaté!!!

Centaura face do poema
de cima,toreia o mundo
tem arrogância charrua,
comtemplação guarani.
Lampeja um lunar na testa
trovejam cascos no chão,
são estâncias missioneiras
lendária “Tierra del Tape”.
Por planícies e canhadas
pastejam bois e tropilhas
coriscam livres nos ventos
os tiros de boleadeira.

Farrapa face guerreira
libertária,igualitária
generais de campo e guerra,
centuriões de chiripá,
uma brigada lanceira
que faz tremer as planícies
que faz ecoar pelos cerros
seu brado por liberdade.
Cavalarias em carga
fidalguia ao derrotado
denodo, honra,coragem
apanágio de uma raça.

Los hombres de Gumercindo
con panuelos maragatos,
carabinas fumacentas,
velha folha de Toledo
e ainda,a lança farrapa.
Inimigo não se poupa
nem os bens ,nem a vida
a face feia da pampa,
hecatombe do Rio Negro
represália no Boi Preto,
um tiempo para el olvido...
um tempo pra nunca mais!
Os rebuliços de Honório
as gauchadas de 30,
entreveros , pataquadas
para honrar lenço e bandeira.
Depois a paz nas campinas
nos setembros, remembrança
tiros de laço,ginetes
crioulos potros levitam
por sobre as flores dos pastos.
A face linda do poema
que vem sorrir feiticeira
na moldura da janela.


04 - CANTIGA PRA UM VINHATEIRO

Autor: Luis Lopes de Souza
Intérprete: Karin Burtet
Amadrinhadores: João Batista Oliveira

Gaúcho...! Um baita Gaúcho!!
Patrício miscigenado
que na inquietude do tempo
reza glórias e ressábios.
... humanizado rascunho
de meus versejos e cantos.
Um vinhateiro terrunho
mais Gaúcho do que tantos...

Esse Ítalo que ostenta
a imigrante descendência
traz na saga de colono
uma longínqua querência...
Seria se necessário
com outro anseio legado,
o mais taura dos ginetes
no lombo de um aporreado...

Esse másculo “persona”
inconfundível nas vinhas,
tem a estampa romanesca
que um Garibaldi já tinha...
Seria em prol de seu Pago
no auge contemporâneo,
outro marujo mui bravo
sem deixar de ser serrano...

Esse mítico gigante
por instinto se confronta,
tanto abraça e protege
como assusta e amedronta...
O Titânico perfil
se agranda cada vez mais,
pra desafiar os labores
em léguas de parreirais...

“Dom Larralde” cantaria:
- Esse guapo vinhateiro
com sotaque do estrangeiro
também é um baita Gaúcho!!

Vi... embora em raros acasos,
o vidro de um olhar claro
se revelando trincado,
amargando tempestades
ou então chuvas escassas
que resumiam a safra
em pipas pela metade...
Também vi no olhar claro
uma sensata paciência
pra reverter os fracassos
em cachos de persistência...

Vi... em rotineiros acasos,
no esboço de um semblante...
tristonhas caricaturas,
nos queixumes de cansaço
uma estranha ternura...
Também vi nesse semblante
uma sagrada certeza:
- Quem crê em Deus e trabalha
tem pão e vinho na mesa...!

Vi... em nostálgicos acasos,
se arriscar numa cantiga
pra afogar a fadiga
e os porquês do desencanto,
lembrança de algum carinho
vinha com gosto de vinho
na melodia de um canto,
... são os mais sóbrios segredos
que por respeito eu não conto...

... o ritual do tique-taque
preludiando a brotação.
... o cio e a fertilidade
no aroma da floração.
... a uva se transformando
num ofertório previsto
e o simbólico milagre
fluindo o “sangue de Cristo...”

Sim... esse guapo vinhateiro
com sotaque do estrangeiro...
também é um baita Gaúcho...!!

Por isso peço permísso
ao vinhateiro que canto,
pra no verso por um ponto
já que me sobram delongas,
mas pra cerrar a cancela
entoar “la verdinéla”
intercalando milongas...!!


OBSERVAÇÃO:
ÍTALO: descendente
Italiano

DOM LARRALDE: poeta
Uruguaio autor de
“Para que tu saibas”



05 - DE GINETES E CAVALOS

Autor: Roseli de Fátima S. dos Santos
Intérprete: Jesus dos Santos
Amadrinhadores: Paulinho Oliveira (violão)
Luciano Salerno (serrote)

Porque será que uns viventes
com acordes bem timbrados
vão dedilhando o passado
e se olvidam do presente?
Será porque não consentem
o Rio Grande de agora
ou vivem do que outrora
no hoje se faz ausente?

Será por que se esquece
que tudo no tempo flui...
E o que não evolui
estagnado perece?
Não sei bem o que ocorre...
Mas é antiga essa prova:
se algo não se renova,
é de teimoso que morre.

E por que a apologia
incoerente ao cavalo,
com esporas e estalos
galopando melodias.
É o ginete, sem um calo
em domas cheias de glórias
que se enche de vanglória
nas proezas de domá-lo?

Que retórica estranha
de alguns mates de rodeio
que partem o potro ao meio
numa bárbara “façanha”.
E enquanto a espora lanha
em frenético apelo
o mango estoura no pelo
trovejando na campanha.

O gaúcho fez história
entronado sobre os bastos.
Escrevendo pelo pasto
o rastro da trajetória.
Por que então a delonga
de domas de fantasia
de quem se estriba e judia
do cavalo nas milongas?

Será que alguém me desvenda
por que será que um e outro
surram o verbo no potro
mas nunca cantam a prenda?
Pois a pé ou a cavalo
o gaúcho por mais rude
tem a mais nobre atitude
com a mulher que é seu regalo

Entendo que nessa lida
de montar em temporal
a força seja normal
quando se joga com a vida.
Porém, sangrar o animal
e fazer arma das garras
-abraçando uma guitarra-
É oportunismo total.

O gaúcho de verdade
não sai cantando de galo,
pois pra domar um cavalo
precisa mais que vaidade.
Só respeitando o perigo
ganha a vida e, por lucro
depois de amansar o xucro
conquista mais um amigo.

É preciso mais que acordes,
que pilchas de figurino...
Tem que jogar com o destino
pro potro ficar no molde.
Quem conhece esse serviço
e vive sobre os arreios,
não parte bicho ao meio
nem sai se gavando disso.

Não é a toa que falo,
nem tão pouco me incomoda
esse campeiro da moda
que tem medo de cavalo.
Desse suposto ginete
é que meu verso reclama,
por pretender ganhar fama
sem nunca montar um flete.


06 - DESAMOR
Autor: Carlos Omar Villela Gomes
Intérprete: Liliana Cardoso
Amadrinhador: Geraldo Trindade

O desamor se derramou em meu olhar...
Gota a gota, afogou o que era belo
E eu finei na torre alta de um castelo
Que, sem base, foi criado pra afundar.

Eu me vi, já sem crença nem altar,
Praguejando mil lamúrias para Deus...
Se é tão forte, porque não cuidou dos meus?
Se é tão grande, me dê fé pra acreditar!

O desamor inundou silêncios
Que gritavam tanto...
Contracanto de uma voz
Que murmurou meu nome...
Me fez pó no corredor
Campeando os arrabaldes...
A seguir uma esperança
Que morreu de fome!

Lá me fui...
Cada passo era um espinho
Cutucando a alma nessa estrada...
Logo atrás, a miséria escancarada,
Logo à frente a incerteza dos caminhos.
Me acheguei, me arranchei, chorei baixinho,
Fiz faxina, capinei, catei papel...
Girando nesse estranho carrossel
Que os homens batizaram de destino.

Olhava meu marido, cabisbaixo
Tenteando qualquer bico, qualquer changa...
Um taura se perdendo por borracho,
Um livre se sentindo um boi de canga.

Meu filho, que largou o seu petiço,
Ganhou nesse caminho choro e medo...
Chinelo vagabundo entre seus dedos,
Um pária, sem saber o que era isso.
Na infância, a cidade deu sumiço,
Dos planos, a miséria fez retalhos...
Enquanto eu me estropiava no trabalho,
A sina lhe mostrou a dor e o vício.

O desamor chegou, com outra cara,
Regado de violência e de fumaça...
Entre as armas das mãos que desamparam
Beijou-lhe com sua boca de desgraça!

Na pedra colocada num cachimbo
Perdeu-se minha razão do amor materno...
E quem há tempos freqüentava o limbo,
Caiu no poço ácido do inferno.

Eu suei muito, doutor,
Pra ter arroz e feijão...
Um rádio clareando as noites
E tantos calos nas mãos;
Na sina medonha e lerda
Até o rádio ficou mudo...
Pois meu filho vendeu tudo
Para comprar outra pedra.

Eu chorei muito, doutor,
Até o choro que eu não tinha...
Conversei, aconselhei
Sobre essa praga mesquinha.
Falei do bem e do mal,
De um mundo que afia os dentes...
E o que torna diferente
Um homem de um animal.

Eu morri, ressuscitei,
Buscando forças, nem sei...
Pra lhe mostrar seu valor;
Xinguei, bati, apanhei,
Um dia o acorrentei...
Ah, quantas chagas sangrei
Nas garras do desamor!

Mas ele sempre fugia...
Ganhava a rua, mentia,
Assim se foi mês a mês...
Quem corria cancha reta
Hoje rouba bicicleta
Para fumar outra vez!

Então, de novo o destino,
De novo a droga covarde,
Extraviou meu menino
Pra o desconsolo das grades.

Antes a míngua do campo
Que ver meu sonho sumindo...
Antes morresse parindo
Que ver meu filho assim;
Alma e corpo ressequidos,
Seguindo o rumo dos maulas...
Um bicho dentro da jaula
Olhando triste pra mim.

Onde eu errei seu doutor?
Talvez por ser preta e pobre?
Talvez por campear os cobres
Num mundo corcoveador?
Onde eu errei seu doutor?
Onde eu encontro a saída?
Existe um resto de vida
Na tumba do desamor?


07 - IDENTIDADE

Autor: Diogo Correa
Intérprete: Márcio Costa
Amadrinhador: Guilherme Collares

Eu, não sou eu...
Eu sou o campo de exauridas terras,
natural riqueza que vai se acabando.
Entranhas expostas, feridas abertas,
que em plagas desertas estão se tornando.
As fontes secas, os mananciais drenados,
onde os deserdados sem terras, em favelas,
o que eram estâncias, acabam transformando.

Eu, não sou eu...
Eu sou rio, fora do leito, transportando esgoto.
Bombas potentes sugando vidas,
via interrompida por lixo e escombros.
Um dar de ombros por algo já roto,
um direito torto, que não é direito,
falta de respeito com a própria vida.
Tristes exéquias para um rio morto...

Eu, não sou eu...
Eu sou o tempo que se arrasta lento,
pra quem vive só na espera.
Rápido pra quem se perdeu no tempo,
transformando sonhos e quimeras.
Castiga como vento de agosto,
marca com rugas o rosto e
transfigura ranchos em taperas...

Eu, não sou eu...
Eu sou o índio, nativo destas paragens,
que cativo por alienígenas mensagens e
estranhas imagens, foi reduzido,
a um ser, triste, sem vontade.
Hoje, a beira das cidades, sobrevivente.
Vendendo cestos. Pegando restos,
sem direito de ser gente...

Eu, não sou eu...
Eu sou o piá, das ruas e sinaleiras,
desgarrado na sina povoeira,
sem petiço, sem gado de osso,
pedindo “pila”, estendendo a mão.
Olhar faminto de atenção e sonhos,
estranhos vôos de cola e benzina,
triste rotina pra quem só ouve, não!

Eu, não sou eu...
Eu sou o peito, anseio da mulher,
que acolhe, que apascenta.
Mulher, que nas lutas da querência,
criou filhos, cuidou de estâncias,
pra que seus homens, na sanha guerreira,
ignorassem fronteiras encurtando distâncias
e fossem prolongando ausências...

Eu, não sou eu...
Eu sou o homem que habitava o meio,
hoje sem arreios, campeiro sem lida e que,
pra ganhar a vida, recorre pelas lixeiras.
O que restou de ginete e domador,
é puxar uma “gaiota”* e na triste morte anunciada,
mora hoje num barraco,
papelão e lata, beira estrada...

Eu, não sou eu...
Eu sou “alguém” que viaja a meu lado,
na estrada vida em que vou tropeando.
Que me ampara quando estou cansado
e me consola quando estou sofrendo.
Que esquece e perdoa quando estou zangado.
Que nas “lides” me faz um costado e que estará de pé,
quando eu estiver morrendo...

Eu, não sou eu...


*Gaiota: Tipo de carroça rudimentar montada sobre os galhos (gaios) d’uma forquilha


08 - INVENTÁRIO DA SAUDADE
Autor: Guilherme Collares
Intérprete: Francisco Azambuja
Amadrinhadores: Guilherme Collares

Rol de bens a inventariar:

- 20 quadras de campo de baixa qualidade;
- Casa, galpão e mangueiras muito antigos e mal conservados;
- 850 reses de gado geral;
- 22 cavalos de serviço;
- 60 capões de consumo;
- 4 cachorros ovelheiros.
..........................................................................
E a memória de seis sofridas gerações...
Com quem ficará?
...................................................................................................................................................
Com quem ficará?

Todo o campo se divide,
casa, mangueira e galpão...
O gado é “ponta cortada”...
E o bem maior, não é nada
pra o conceito do inventário.

O bem maior são as almas
e as memórias já passadas,
que não conhecem partilhas
e que vivem encravadas
e perdidas pelas sombras,
pelos cantos dos galpões...
E nas sangas e nas grotas
e nas curvas das picadas...
E assobiando pelos ventos
que cortam as invernadas
compartindo solidões...

E essas almas esquecidas
não reconhecem cartórios,
nem os timbres, nem os selos
que conferem propriedade...

E, por certo, nem os zelos
que a ganância distribui...
As almas, por certo, entendem
quem sente e vê seu passado
não apenas como um bem,
que se vende ou é comprado...
Mas sim como um sonho herdado
que nem se estima valor.

O que pra uns é mercado
que engorda os bois e as contas,
pra outros é casa e vida
e, por certo, guarda a lida,
as esperanças e os sonhos
das passadas gerações.

O que pra uns são aguadas
que dão de beber ao gado,
pra outros é porto e banho
nas histórias dos verões.
E as várzeas desmerecidas
pelas mortes das enchentes,
são a própria alma dos campos
que revive o que matou...

O que pra muitos é ruína
de um fortim que não tem luxo,
que não comporta confortos
nem móveis sofisticados,
pra outros é casa e história
que contam as tantas vidas
que por ali já cruzaram...

A voz das avós, guardada,
no ranger das dobradiças
das muitas portas antigas...
Que o formal de uma partilha
sequer atribui valor...

Nenhum juiz ou cartório
pode melhor entender
o que as almas das estâncias
querem e podem contar:
De forno e pão das avós...
De laço e doma dos pais...
Dos apartes ancestrais
e tropas no Camaquã...
Dos bisavôs boleadores
caçando boiada alçada
das gadarias baguais...

Por certo as vidas passadas
são veladas testemunhas
que bem poucos ouvirão...
E nenhum advogado
pedirá suas palavras
ou mesmo seus bons conselhos
na partilha que há de vir...

Quem sabe, um dia, a tristeza
inventarie os recuerdos
no cartório das saudades
e a justiça e a verdade
venham meter o focinho
no buçal da realidade...


E que as almas das estâncias
bradem contra as injustiças
e as misérias ambiciosas
que profanam sem pesar...

E, quem sabe, quando a vida
abandonar as retinas
dos muitos olhos sofridos
que perderam seu lugar,
os juízes do universo
promulguem votos sublimes,
exilando suas almas
a sempre errar e vagar...

E seremos a saudade
e as vozes das dobradiças...
E seremos a memória
e o calor de nosso lar...

Seremos o que não cabe
no formal de uma partilha...
Seremos alma de estância:

- Outros poderão contar!...


09 - O ESPELHO EM TRÊS MOVIMENTOS
Autor: Rodrigo Bauer
Intérprete: Pedro Júnior da Fontoura
Amadrinhador: Clênio Bibiano da Rosa

Por mais que seja idêntica, no espelho,
a cor da liberdade da janela;
ninguém conseguirá passar por ela
buscando o outro lado desparelho!

Por mais que seja pura e cristalina
a água que o espelho me revele,
jamais há de molhar a minha pele
ou, mesmo, de alagar minhas retinas...

Por mais que tenha os traços do meu rosto,
o espelho nunca sente os meus desgostos,
nem sabe do que sei ou desconheço...

Às vezes, num momento de conflito,
esqueço em qual dos lados eu habito
e encaro a minha vida pelo avesso!

II
No espelho um outro mundo e está contido,
e um prisma virtual se desenvolve;
que toma a nossa imagem e devolve
o nosso dia-a-dia, repartido!

Um mundo prisioneiro das molduras,
que conta, refletindo, os seus segredos;
e estampa, na expressão dos nossos medos,
o amor, a ira, o ódio e a ternura...

Porém, mesmo na inércia de seus dias,
embaça de tristeza ou de alegria,
e fala no silêncio a sua voz...

O espelho é um outro mundo que se espalma
e, embora o aço frio de sua alma,
é quase tão humano quanto nós

III
O espelho é muito mais que um outro mundo...
Bem mais que uma janela intermitente!
Pois esses dois espelhos, frente a frente,
parecem um só túnel tão profundo!

Enganam meu olhar com ilusões
e, humanos, os espelhos sentem sede...
Talvez, por isso, escavam nas paredes
um poço de incansáveis dimensões!

E, unidos, dois espelhos paralelos,
projetam e acorrentam, com seus elos,
a imagem do infinito refletido!

Produzem, dois espelhos confrontados,
inúmeros reflexos trocados
e, enquanto engolem, vão sendo engolidos!


10 - O HOMEM QUE A DEUS ESPERAVA
Autor: Francisco Rollof
Intérprete: Ariel Pereira

Amadrinhadores: Paulo Sérgio de Oliveira (violão)
Rodrigo Duarte Maciel (violino)

Um pealo do Patrão Velho
Tirou-me a essência da vida
Num sopro firme e certeiro...
E aqui estou, solito, confuso...
Contemplando em silêncio
Esta partida de mim mesmo...
Inda nem sei o paradeiro,
Qual vou desencilhar minha alma!

Angustiado, sem entender...
No compasso das horas,
Deste tempo célico, obscuro,
Vou percebendo minha ausência
Na estância que há pouco deixei...

Sem avisos, sem alardes,
Como um trovão sem maneias,
Fui pealado em silêncio,
Sem ter ao menos o direito
De poder pedir... perdão!

Perdão, sim senhores!...
Perdão pra os que me amavam
E que agora me olham,
Empacado e enrijecido
Feito um punhal deslembrado,
Por sobre a mesa da sala...

Perdão, por aqueles que esqueci
E que, pelas voltas do tempo,
Não me atrevi a desculpar-me
Pelos enganos da vida...

Meu tempo findou,
Como findam outros tantos!

Nunca pensei mirar meu corpo
Deste além mundo improvável...
Sonhava findar velhito,
Com as mãos já enrugadas
Por este tempo maldoso
E pela labuta de outrora...

Sonhava em ver meus netos
A correr pelos potreiros
Sonhei tantos instantes...
Sonhos moços, que morreram,
Quando findaram minhas horas
Nesta querência bendita
Que me viu nascer e morrer!

O grande amor da minha vida
Contempla meu corpo entristecido...
Como se estivesse apenas, parado...

Amada, não chora!
Preciso tanto te falar...

Devo-te um perdão meu amor...
Perdão por tantas horas
Que a fiz sofrer...

Tantos beijos que não dei...
Tantas lágrimas que guardei...
Agora juntas me cercam:
Beijos doces dos teus lábios
E lágrimas tristes dos teus olhos
Que despencam no meu corpo frio!

Esqueci de ti tantas vezes
Na turbulência dos dias...
Vivi profundamente o meu mundo,
Investi em tantas coisas,
Reservei meu tempo pra horas perdidas
E esqueci de dar meu tempo
Pra os que me amavam!...

Flores... A última nem me lembro
E agora estas coroas me rodeiam
Com tantas cores e perfumes...

Ah...
Se eu pudesse ao menos voltar...
Num abraço te diria tanta coisa,
Meu coração falaria...
Ou apenas... um olhar...
Mas que olhar, se estes
olhos fechados,
Condenam minha razão!
Faria tanta coisa...
Tanta coisa que eu não fiz!

Dei razão pra os que não tinham,
Segui profetas, demônios...
Virei as costas pra Deus!
Tantas verdades... tantos erros,
Que ao te ver aqui chorando,
Também choram os olhos meus!

Meu filho chora num colo qualquer...
Uma agonia, amarga e fria
Tomando conta de mim
Te vendo chorando
Queria tanto só um beijo te dar
Mas nem um abraço,
Nem um toque de carinho,
Nem tuas mãos posso tocar...

Como vou te abraçar
Se não passo de um inerte
De um ser que não existe...
Se num infeliz piscar de olhos
Tudo apagou para mim...
Sobraram estes instantes
Pra cobrar o meu passado!

E esta música tristonha
Que paira neste lugar...
Vozes roucas que acenam
Pra partida de mim mesmo...

Chegou a hora...
Nunca pensei em me ver
Descendo ao chão assim...
Terra e flores esquecidas
Jogadas em cima de mim!
..........

Apenas o gado xucro
Pisoteia ao meu redor...
Os que eram meus se
foram embora...
Restou-me a paz da solidão
E a confiança que o Criador
Possa aceitar o meu perdão!

Vagando por esta pampa,
Revejo traços de uma vida
Que não me ensinou a morrer
Porque meus sonhos eram sós,
Não tinham nada a oferecer...

Deste além mundo esquisito
Estou mateando com a incerteza
Desde quando a minha alma
Desprendeu-se e foi ao léu...
Assim choram os olhos meus
Na espera de encontrar meu Deus,
Pra me levar além do céu!


11 - UMA NOITE PRA ROMANCE
Autor: Vaine Darde
Intérprete: Valdemar Camargo

Amadrinhador: Juliano Moreno

De tão clara, a lua cheia
acordou o girassol...
E a pampa enluarada
Se reflete nas aguadas
Com matizes de arrebol...
Eu não sei se é delírio
ou se é arte da poesia,
se a noite quer ser dia
ou se a lua quer ser sol

Percebi, no entardecer,
que o ocaso, em seus aprontes,
passou ruge no céu raso,
batom na boca da noite.
Notei, depois da cancela,
no luzeiro do horizonte,
uns tons mesclados de rubro
qual se o sol, em uma tela,
colorisse de aquarela
a tardinha de outubro.

Tamanha lua redonda
nos convida pra um aparte
nesses enlaçes de ronda
na intimidade do catre...
Pra ficar ouvindo o campo
em seus acordes nativos,
olhando uns olhos cativos...
com brilho de pirilampo.
Que noite pra ser vivida
com total intensidade
sem ligar para o depois,
qual se toda humanidade
conseguisse amar em dois...

A noite encilhou os potros
com aperos de luar
e o galo solfeja tonto
anda polindo as esporas
no trajeto das tropeadas.
O olhar fica encantado
com tanta luz derramada
em cada lua aninhada
sobre os discos do arado...
Ah, que lástima me invade,
ter que prosear com a saudade
que há muito me faz costado!

Numa noite como esta
não tem paixão que descanse,
é uma noite pra romance
alumiado pelas frestas...
Não há nada a clarear,
nem precisa lamparina
porque o rancho se ilumina
com goteiras de luar.
O amor, em noite assim,
ganha lumes na penumbra
quando o plenilúnio alumbra
pela quincha de capim.

E após o amar amado
em seu frenesi lunar,
há dois anjos abraçados
a dormir e a sonhar:
Sob um lençol de lua
a magia é tamanha
que a ternura dorme nua
em um catre de campanha!

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