10ª QUADRA - SETEMBRO DE 2005


1 - OS CAVEIRAS E O ENGODO DA MORTE
Autor: Carlos Omar Villela Gomes
Intérprete: Liliana Cardoso - Amadrinhador: Geraldo Trindade

Os olhos nem se cruzaram
desde a saída pra lida...
Um vinha mais que montado
num baio que era um colosso,
O outro vinha num trono,
enforquilhado no mouro.
Dia longo, sol ardendo,
légua e pico, campo vasto...
Enfim o final de tarde e a
volta mansa pras casas.

Num repente o do baio cravou
as esporas e deu-lhe boca!
O outro, por ligeiro, já cutucou
num puaço o mouro que
vinha quieto.
Poeira comendo floxa,
gritedo ecoando longe!
Pata que pata os cavalos!
Relho que relho os gaúchos!

Carreira sem pretensão,
Sem cismas de cancha reta...
Uma carreira de campo,
Conforme disse um poeta.
Carreira dessas parelhas
Corrida por dois iguais...
Dois índios de campo e lida
Com almas de temporais.

Mas havia no caminho uma
toca de mulita...
Houve uma toca, uma pata
enfiada, um mouro rodado,
um pescoço quebrado,
Uma moça viúva, dois
piazitos órfãos e um velório
às pressas.

Houve sim, mas e por quê?
Por que a carreira, por quê?
Nem mesmo o moço do baio
Ao certo soube dizer.

Por que se calou de soco
Quem tinha muito a viver?
Por que se calou, por quê?

Por entre o pranto de todos,
Em vez do moço do mouro
Jazia apenas um corpo
Já sem estrelas no olhar.

Ao lado os Caveiras sorriam
com suas caras brancas,
Estranhos feito um palhaço
dançando dentro de um vaso.

Só eles sabiam bem...
Só eles tinham a voz;
Sabiam cada segundo
Da hora de todos nós.
Sabiam quem tinha a foice
Afiada, à mão de ceifar...
Sabiam o tempo exato
Que a foice cortava o ar!

Os Caveiras se esbaldavam...
Sorriam suas caras feias
De um jeito devastador.

Talvez lembrando o momento
Em que um deles se achegou se
engarupando no baio
E soprou ao pé do ouvido
do que se achava montado:
“-Crava as esporas e azula!”
E assim foi que aconteceu.
Talvez lembrando o momento
em que o outro, sussurrante,
Chegou pra o hoje finado,
e disse: “-Corre de atrás!”
E o moço, por bem mandado,
correu de atrás... ...e morreu.

Se divertiam assim...
Assim era que passavam.

De vez em quando nos rios,
nos açudes mais traiçoeiros,
Nos arroios mais covardes,
chegavam pra gurizada,
Como não querendo nada: ”
- Mas tchê, que baita calor!!”
O suficiente já era...
Em dez ou quinze minutos,
meia dúzia de afogados
Pra aumentar sua coleção.

As palavras dos Caveiras
(Com suas sílabas traiçoeiras)
Eram o engodo da morte.

Tantas feitas sucedidas com
feições inusitadas...
Tantas coisas escondidas
em histórias mal contadas;
Os Caveiras eram praga
pairando por esta terra;
Se já aprontavam na paz,
se deliciavam na guerra.

Trinta e cinco foi assim,
paraíso pra os Caveiras
Que ponteavam cada
carga com suas frases derradeiras;
Noventa e três, tempos brabos...
Eles chegaram gabolas...
Lavaram as caras brancas
no sangue ruim das degolas!

E assim foi por tanto tempo...
Em cada revolução...
Em cada fio de vingança
Do cornudo da ocasião.
Em cada trago de canha
Das peleias de bolicho,
Estavam sempre os Caveiras
Com seus medonhos cochichos.

Era o engodo da morte
Satisfazendo os caprichos.

Sei que a morte não é o fim,
Mas precisa ser assim?
Derrubados pelo engodo
Com palavras de festim?

Cadê a seqüência das coisas?
Cadê os ciclos naturais?
Pior que a morte de um filho
Só mesmo a dor de seus pais...
Não tem a mão do destino
Nessas piadas fatais!

Ouço uma voz murmurante
acariciar meu ouvido,
Enleiando os pensamentos
em cada duplo sentido...
Talvez me leve por diante,
talvez me arraste no estribo.

Quem sabe são os Caveiras,
sorrindo em suas caras brancas,
Trazendo o engodo da morte,
cobrando a vida sem prazo...
Estranhos feito um palhaço
dançando dentro de um vaso!

2 - SEM SABER REZAR
Autor: Lisandro Amaral
Intérprete: Francisco Azambuja - Amadrinhador: Fábio Peralta

Caminho que a alma traduz
vestido de luz, num motivo
guardado...
caminho que o tempo reluz
do calvário e da cruz no
poema sangrado

eu teimo ao quebrar
meu silêncio
entre o muito que penso
e no algo que leio...
nas preces e aromas de
incenso, onde rezo e repenso
os mistérios que creio!

Além de mim, não há um fim!
Nem deverá...
além da cruz, não houve a luz?
– nem brilhará?
os muitos motivos sangrados,
do cristo pregado, jamais saberei
jamais saberás!

Eu não brilharei, tu não brilharás...

Enquanto a vaidade do mundo
falar mais profundo que a
voz dessa luz,
enquanto os mistérios que
cremos e o algo que lemos
não possa explicar:

Eu não brilharei, tu não brilharás...

Brilha... a beleza de uma
corticeira refletindo o sol;
brilha... o retouço de um
cordeiro frente ao arrebol!
Luz na paisagem, de um final
de tarde, onde paro e penso:
se eu brilharei? Se alguém brilhará?

Ainda chora o homem por não ver a luz de um bom por de sol!

Que o bom Deus te guarde poesia viva...
...que o bom Deus te guarde!

Pingos rebolcados, cantos encantados de sabiás e vidas
vem na recolhida, luz enternecida de um clarim barreiro
que abre o peito e canta, que abre o peito e canta
por ter mais garganta que estes pregadores que assinam pastores
e a gritos e ditos formam falsos ritos na ambição mesquinha
de roubar o pouco de quem já vem louco pela vida amarga
pela vida l a r g a...
meu canto é um grito e tem missão guerreira.
de sentar basteira e levantar trincheiras por onde andejar!
Meu canto é triste porque é triste o homem que ainda vai ter fome sem saber rezar...

meu canto é triste porque é triste o homem!
..................................................................

Encilhei tiflando noutro dia bueno!
Lambia o sereno meu par de choronas,
agarrei cordeona, e já me pus montado
dizendo à campanha que estava de prece
e a luz que enternece meu canto pampeiro
é a mesma contida no cardeal guerreiro
e o pranto, luzeiro, que a manhã derrama
é o mesmo que flama no olhar do Barreiro!

Num culto campeiro sem bronze nem ouro
somente as bombilhas prateadas no couro,
somente as argolas num buçal de touro
que foram compradas com suor dos calos
não foram esmolas ao som dos badalos
me acompanham rindo quando teimo e vivo!

E hoje refletem motivos de luz
aos olhos da cruz de um céu domingueiro.

Pergunto ao dinheiro que o campo não vê,
Pergunto ao pastor que o pobre ainda crê,
Terá no amanhã algo mais que colher
aquele que escuta sermões sem saber?
Que o campo é quem reza no olhar da alvorada
que o grito e os ditos que a missa decora
de nada combinam com o homem que chora
e de nada nos servem de alento e escora!

Encilho matreiro - maneador e poncho -
me escolta a esperança de firmar meu canto

e aqui, brilharei... e assim - brilharás!

Os muitos motivos do Cristo pregado?
Então saberei? Então saberás?

Meu canto é um grito e tem missão guerreira...
de sentar basteiras e levantar trincheiras por onde andejar...
meu canto é triste porque é triste o homem
que ainda vai ter fome sem saber rezar...


3 - QUE BENDITOS SEJAM OS VERSOS!
Autor: Sebastião Teixeira Corrêa
Intérprete: Carlos Weber - Amadrinhador: Clênio Bibiano da Rosa

- Deus abençoe os poetas
Que transformam sentimentos
Em palavras de ternura, pros veios do coracão!

Deus abençoe os poetas
Que acendem luz nas palavras
Pra iluminar os caminhos escuros da solidão...!

A poesia é lenitivo
Ungido em bálsamo bento
Que, aquecendo o sentimento, faz a leveza da alma,
Acaricia e acalma... reconforta e alivia...
É dom de Deus a poesia; é sonho,
amor... É esperanca,
É um sorriso de crianca; é suave encanto... É magia.

Os poetas são discípulos
Da Egéria (Deusa bendita),
A mais doce, a mais bonita; musa etérea... Inspiração,
Quando ela desce silente e pousa dentro da mente,
É dádiva da semente buscando a fecundação.

Há quem sublime em poesia
O amor à terra, ao civismo;
Vertente de telurismo; mescla de encanto e afago.
E quem canta o próprio pago,
enchendo a pátria de verso,
Ceva um mate de universo, pra sorve-lo trago a trago.

Há quem descerre a cortina
Das injusticças sociais,
Mostrando para os demais,
angústia e indignação,
Ao ver tanta ingratidão a alguns
filhos da querência
Que vivem a eterna indigência,
Na ausência de compaixão.

Outros, que encantam, ao lirismo
Ao versejar seus amores,
Romantismo, campos, flores...
Coxilhas e pradarias;
Em quadras de sesmarias,
onde as rimas se entrelaçam,
E onde os versos se abraçam,
qual um tear de poesias.

Quem tem alma de poeta
Tem o mundo à sua volta;
Quem tem alma de poeta,
quando seu verso se solta
É um canto buscando ouvidos
sensíveis dos que compreendem
Que a vida é mais que matéria
daqueles que aqui se prendem.
Quem faz da vida, poesia,
vive em eterna alegria,
Na plenitude... (Energia) que os
próprios versos transcendem.

Deus abençoe as gargantas,
Que na eloquência dos temas
Emolduram os poemas,
dando vida aos recitais;
Deus abençoe os que buscam, na inspiração dos acordes,
As mais lindas partituras
Pra completar as molduras dos
palcos dos festivais!

Somos, todos, peregrinos
Somos fiéis e romeiros
Somos eternos parceiros,
rumo ao altar da lagoa,
Aonde o canto ecoa e o verso
sai de acavalo
Como quem bota um pealo
nalgum joão grande que voa.

Irmãos de sonho e de arte,
Irmãos de verso e querência,
Na fraterna convivência,
irmanando os ideais;
É o gen herdado dos pais,
transmitido a cada irmão,
É a mais santa evocação
desta terrunha legenda;
Sorriso meigo da prenda...
Motivos de inspiração.

Enquanto houver um poeta,
Um guitarreiro tocando
E algum taura recitando versos
de cunho campeiro...
Enquanto houver entreveiro
junto a um fogo de galpão,
E a cuia de chimarrão,
comungando a confraria,
Haverá Pátria e poesia...
Alma, terra e tradição!!!


4 - ÚLTIMOS CARRETEIROS
Autor: Carlos Omar Villela Gomes
Intérprete: Patrocínio Vaz Ávila - Amadrinhador: Geraldo Trindade

Não sou as rugas e os cortes
Que a vida marca em meu couro...
Sou bem mais que algum lamento
À beira deste fogão.
Meu olhar revoa ao longe,
Muito além dessa fumaça...
Além da nuvem que passa
No ventre da imensidão.

Meus anseios vêm de longe,
De muito além desta era...
São juntas de bois brasinos
Cruzando tempos e estradas.
Os sonhos são santa-fé
Quinchando carretas velhas,
Que povoam meus silêncios
E o fundo dessas volteadas.

São tantos eixos rangendo,
São tantas rodas girando...
E a sina de carreteiro
Vai repetindo: -Até quando?
São tantos, tantos caminhos,
Plenos de pó e atoleiros
E um manto de soledades
Mais largo que o pampa inteiro.

O pampa é um céu pra quem sonha
Nas asas de uma carreta...

Miro na volta de manso...
Outras almas também sonham
O mesmo sonho que eu;
Esteios de um tempo velho
Em cada olhar resistente,
Pechando a vida de frente
Sem qualquer sombra de adeus.

O fogo busca os silêncios mais fundos
Que nossas almas remoem inquietas...
E faz dos olhos porteiras abertas
Pra os nossos sonhos ganharem o mundo.

E cada rosto se faz um espelho
Onde as lembranças, a pouco caladas,
Trazem um tempo repleto de estradas
E uma carreta de luz por sinuelo.

O fogo faz que devora
Mas na verdade acarinha...
Há um ranger que vem de longe
Alimentando o rodar
Do eterno ciclo da vida.

Quem sabe o mundo girando
Seja apenas uma roda
Da carreta mais bonita
Que Deus Pai idealizou.

A vida passa e repassa,
O mundo segue girando,
A inquietude picaneando
E a sina de carreteiro
Ainda repete:- Até quando?

Até quando Deus quiser
E Deus sempre há de querer...
Não me falem de passado
Quando eu falo do presente...
Do meu sangue, da minha gente,
Da minha noção de alma.

Sou filho de carreteiro,
Meus companheiros também...
E não me venham, doutores,
Com patacas e motores
Que de estradas e de amores
Nós sabemos muito bem.

Talvez não sejamos fortes
Ou verdadeiros heróis...
Mas o que somos e amamos
Nem mesmo o tempo destrói.

O mundo corre, se apressa...
Nós seguimos devagar;
E assim enxergamos coisas
Que muitos, sempre correndo,
Não tem tempo de cuidar.

Como a vida é mais bonita
Pra quem sabe perceber
A beleza que há na vida!

Os resmungos da carreta
Talvez sejam meus também...
Eles nos contam segredos
A cada nova jornada.
Pra que pressa? Temos tempo...
Todo o tempo da existência...
Os bois seguem no compasso
Que marca o meu coração.

Meu pensamento se eleva...
Procura os olhos de Deus,
Vertendo luz entre as trevas;
Toda essa luz que conserva
Tão viva a nossa missão...

Minha carreta é meu templo
E a estrada, minha oração!

5 - CHERETÃ
Autor: Colmar Pereira Duarte
Intérprete: Anderson Trautmann Cardoso - Amadrinhador: Geraldo Trindade

Se a terra tinha dono
E se foi dito ou não, por tiaraju,
A quem bania os índios
Pra dividir a posse deste chão.
Que importa a tradução desse seu grito?
Importa o grito contra a opressão!

“Eram armas de Castela”.
Que vinham do mar de além
De Portugal também vinham,
Dizendo, por nosso bem:
Mas quem faz gemer a terra
Em nome da paz não vem.”

Há feridas que o tempo cicatriza,
Outras, que a história enterra, esconde, apaga.
Quem – por não aceitar outro destino –
Foi condenado à morte e ao extermínio
Sob o fogo dos canhões morreu sem glória;
Pois é quem mata quem escreve a história!

E, hoje, pergunta o menos avisado:
- Qual o legado Guarani que existe
Incorporado à nossa cultura?
- O quê, além das ruínas missioneiras,
Sobrou para lembrar esses nativos
Que ousaram enfrentar duas bandeiras,
Querendo a terra que entendiam sua.

Que mais restou para lembrar o idioma
-que é voz da Pátria e sua identidade –
A não ser
Nome de arroios e de rios
Batizados por eles, não cambiados
Pelos nomes de santos, como tantos?
Uruguai, Ibicuí, Iñhaporã, Quarai, Japejú, Ibirocaí,
Apesar do homem branco e dos maus tratos,
São artérias na carne desta terra,
Mesclando com as águas das nascentes
O Sangue do holocaustro de inocentes
E as lágrimas dos órfãos dessa guerra!

“Eram armas de Castela
Que vinham do mar de além.”
Já traziam decidido
O que pertencia a quem.
Afinal , nas caravelas
Vinha a civilização.
Nativos e sua cultura
Não importavam a ninguém.
“De Portugal também vinham,
Dizendo, por nosso bem”.
Bacamartes e canhões
Davam o inferno pros índios,
Enquanto as duas coroas
Mediavam o paraíso
- troféu aos sábios, que sabem
que navegar é preciso.

Sepé peleou contra isso.
Viu seu povo dizimado,
Submetido ao martírio,
Nos canhões de Gomes Freire,
Na espada de Valdelírios.

Quem viveu de perto a história,
Em louvor à sua memória,
Fez santo o índio guerreiro.
Seu sangue corre altaneiro
Nas veias da gauchada;
Na risada escancarada,
Nos gritos de rebeldia;
No sopro da ventania
Que é ânsia de liberdade;
Na herança dessa etnia
Que miscigenou a raça;
Na erva mate, que passa,
De mão em mão, amizade;
Sinal de hospitalidade,
Por onde o gaúcho ande
- pelo guarani legado –
Hoje é símbolo, estampado
Na bandeira do Rio Grande!

Glória aos que, mesmo sem armas,
Desfraldam sua bandeira;
Trazendo à luz verdadeira,
Como única premissa,
Esse brado comovente;
É o sangue dos inocentes
Pedindo à história justiça!


6 - VENDAVAL
Autora: Ruth Farias Larré - Antonio Cândido A. Ribeiro
Intérprete: Ruth Farias Larré - Amadrinhador: Marcos Vinícius Araújo

Quando ele veio pela vez primeira,
era somente uma visita estranha,
trazendo lá de longe, além-fronteira,
o belo som da fala castelhana.

Já na segunda vez – amigo do marido –
vi brilho de espada nos olhos profundos,
senti-me abalada, rubor descabido,
trazia ciclone, virava meu mundo.

Minha vida rotineira, tranqüila, sem sobressaltos,
virou campo sem porteira, casa tomada de assalto.

E as lidas certas, os meus afazeres,
o que era bom, necessário e costumeiro
ficou sem graça, difícil, enfadonho:
a horta, a ordenha, a lida no terreiro.

E ele passou a chegar mais amiúde
os olhos mais ousados cada dia,
um braço que roçava no meu braço:
prazer de brisa, efeito ventania.

A cabeça me manda ser sensata,
o coração não ouve, enlouquecido.
Inquietude incessante me arrebata,
grita em mim o desejo proibido.

Ah, já me sinto dominar pelo tirano,
que me atiça, me puxa, me rodeia.
Sim, avança qual potro aos corcoveios,
libera seus instintos sem maneias.

O destino, a gente sabe, faz os arranjos que quer.
Juntou palha, trouxe lenha,
reascendeu a mulher.

Beijos roubados, muy locos, afagos de brisa e mar.
Como mostrar resistência? Como, sem forças, lutar?

E os corpos, desgovernados, explodem em comunhão!
Ah, andei no céu, criei asas, fui parte da Criação!

Mas, ah, foi fugaz meu delírio, o marido apareceu.
Voltou antes do previsto. Todo o céu escureceu.

Dois titãs se defrontando, feras em luta mortal.
Uma fêmea ensandecida, uma aventura fatal.

Suspensa como num transe, no retinir das adagas,
fiquei muda, esfacelada, a alma se abrindo em chagas.

Não sei quem caiu primeiro, nem qual foi o mais valente.
Fiquei eu como um fantasma, um corpo semivivente.

E hoje, velha, estropiada, abandonada no asilo,
carrego o peso da culpa, o sem-fim do meu martírio.

Quando me olham e escutam a história de minha vida,
zombam de mim, acham graça, me chamam doida varrida.

Melhor mesmo que não creiam, melhor o riso de escárnio
que o grito de acusação. Melhor eu mesma, sozinha,
levar meu triste pecado, meu pontaço de aguilhão.

Mas quero dizer-vos algo,
mesmo pedindo perdão:
que atire a primeira pedra
quem nunca sonhou um dia
com a ruptura, com a quebra
da aparente harmonia
de uma vida sempre igual,
sem ciclone que devaste,
sem paixão que nos arraste
pro meio do vendaval.


7 - MEMORIAL DE UM TEMPO ANTIGO
Autor: Léo Ribeiro de Souza
Intérprete: Rodrigo Canani Medeiros - Amadrinhador: Márcio Rosado

episando o próprio rastro, que ficou petrificado
nos lamaçais, por três dias,
quando desceram as quebradas da Serra da Bananeira
rumo a Conceição do Arroio,
sentindo ainda o perfume da maresia praieira,
vem de volta a comitiva, despacito, a passo lerdo,
de alguém que andou e andou sob o sol de muitas braças.

Cinco homens bem montados, com estirpe campeiraça,
em arreios requintados sobre fletes amilhados
vem proseando sobre o tempo e os segredos das lavouras.
Dois guris vem lá no coice, em fuzarca, a trote largo,
dando risada por nada e assoviando o “Mate Amargo”.
A piazada não cansa ...

Doze mulas no compasso do cincerro tilintando
vem mermando lomba a cima com bruacas estufadas,
arreatadas com o jeito de quem cresceu nas tropeadas.
Desceram com charque gordo, queijo novo, algum pinhão,
e sobem com canha pura, com farinha, rapadura,
açúcar amarelado e melado em borrachão.

É a troca de mantimentos que por muito foi sustento
da gente da região.

Num cerro limpo estaqueado entre dois capões de mato
vão tirando o pé do estrivo e frouxando os aparatos.
Estirando a pelegama, capa Ideal, o chergão,
ao cabo de pouco tempo um catre sobre a campina
fica a espera de seu dono.

Os guris catam gravetos, já coacha alguma rã,
juntam tudo que acham seco contra um pau de tarumã
e fantasmas de fumaça prenunciam fogo alto.

Enquanto a cambona antiga aquenta a água pro mate
alguns atam a cavalhada, outros revisam cargueiros.
Nicanor, o peão caseiro, chega toucinho e uns temperos
numa panela mulata pra um guisadito com molho.
É mestre nestas manobras...
E a buldoga prega o olho na espera de uma sobra.

E depois da bóia quente vertem causos e delongas
a cantar a sua gente alguém lasca uma milonga.
Seu Acácio, com paciência, pica fumo, arma um pito,
prende fogo, exala essência de um palheiro criolito
vaga-lume das noitadas.

Outro bugre busca o sono estendido nos bacheiros
sob o pé de um cinamomo no bombeio dos luzeiros.
Então rebrota a saudade que é brasa em cinza oculta
e na distância de casa basta um sopro, já se avulta.

E por falar em saudade
este meu canto reverte pra um tempo que foi embora
com a minha mocidade
Emudeceram as esporas, hay silêncio nas pousadas,
a budega hoje é tapera, nada mais é o que era,
a relva cresceu na estrada.

Não s’escuta a ringideira dos balaios de taquara
e o bate casco das tropas desviando das coivaras.
Ninguém emborca porongos
para encher de água corrente pelas sangas do caminho.

Ninguém madruga ao relento, não se escuta nem lamentos
do dedilhar de algum pinho.

Três Forquilhas, Três Cachoeiras, Barra do Ouro, Itati,
s’aquerenciou c’os povoeiros aquele antigo tropeiro
que andejou por aí.

E a Serra da Bananeira onde Cristóvão Pereira
também cruzou algum dia
ficou na minha memória que por bem ainda não falha.
Ficou nos ranchos caboclos, no canto das cotovias,
ficou nos avios, nas tralhas, na minha simbologia.

Mas se a vida é um reencontro,
num futuro, logo adiante
surgirão nestes lançantes
nova tropa de muares
nova gente caminhante.

Nova chama aquecerá
o entorno do borralho,
vasilha com carreteiro e
um milho verde espetado
e nós seremos lembrados
em algum causo retrechado
por um turuna qualquer.

Nos tornaremos passado,
lembranças e nada mais.

As nossas dificuldades,
bravuras, felicidades,
não estarão nos anais...

Mas vivenciei meus momentos
de uma maneira terrunha
e por isso não me queixo.
A calma destas pousadas,
uma existência regrada,
o ir e vir das tropeadas,
a parceirada de lei,
são partes da minha jornada que jamais esquecerei.


8 - O CAPELÃO
Autor; Luiz Lopes de Souza
Intérprete: Paulo Ricardo dos Santos - Amadrinhador: Rodrigo Cavalheiro

“...Deus deixou, segundo sua vontade
as coisas fracas para confundir as fortes
e as coisas loucas para confundir as sábias...”

Então protegei Senhor...esse terrunhos
Que são frágeis na razão e na sapiência,
Estão predestinados ao olvido tolo
Mas lutam por instinto e obediência...
São humanos ignotos e inocentes
Que na eminência insana do combate
Esquecem de evocar sua clemência
E chocam indefesos a vanguarda
Num estrondo que estremece a querência...
Só se ajoelham para o senhor esses bravos,
Que são escudos humanos certamente
E tombarão mutilados pra serem lembrados
Como másculos, heróicos e indomáveis
Com o rótulo dúbio e obscuro de valentes...

Protegei Senhor...essa cavalaria rude
Que impetuosa, obrupta e estremunhada
Descamba alucinada o lançante...
Que tenham muralhas nos encontros esses potros
Pra o baque bruto e brusco da pechada...
Que seus ginetes tenham braços férreos
E não vacilem no brandir da espada...
Que se usem certo o valor da esquiva
Corpeando ágeis sobre seus cavalos,
Que não recuem no terror da luta
Esmagando a cascos o inimigo “malo..”

Daí força Senhor...A quem tombar ferido
Calai o agudo da dor mais horrenda
E estanque a sangria desses moribundos,
Que os tocos de lanças nos peitos inertes
Não sejam fatais nem rasguem tão fundo...
Que os talhos de adagas e furos de chumbos
Não passem de ardência na carne insensata,
Quem for pra morrer, que não sofra
na morte,
Quem ileso pelear ajudai a ser forte...

Perdoa Senhor...os que mortos ficarem
De borco esvaídos no barro sangrento,
É o lúdico fim de uma frágil matéria
De humílima vida vivida em vão...
Tende pena e piedade dos fracos humanos
Perdoe as amargas de seus corações...
E traga depressa a paz meu Senhor...!
Os homens guerreiros que lutam e morrem
São tão miseráveis que as vezes não sabem
Sequer porque lutam e sequer porque morrem...!

Por eles eu peço a sua benção Senhor...
E entenda as razões desta prece apressada
Que em meio a um combate é escudo de fé,
Pois tenho na alma a crença sagrada
E no peito gaúcho o furor de Sepé...!


9 - SONATA EM SOL MAIOR PARA A DONA DAS MANHÃS

Autor: Vaine Darde
Intérprete: Pedro Jr. Da Fontoura
Amadrinhador: Valdir Verona e Rafael De Boni

A luz te busca, se projeta tonta,
Pousando leve no teu corpo claro;
Te envolve em ouro quando o sol desponta
Luzindo em formas de relevo raro.

Um brilho emana quando a luz te encontra
E em ti se exila pra ganhar amparo;
A luz, sem rosto, no teu corpo apronta
A tez aérea que requer reparos...

Ansioso de que a aurora se revele
O sol prepara o dia em tua pele:
Esplêndido arrebol de puro zelo.

Enquanto dormes límpida e despida,
No tom da claridade amanhecida,
O sol reflete a luz dos teus cabelos.

Estão os girassóis adormecidos...
E a aurora, com saudade de revê-los,
Desperta o sol que trazes distraído
E esquece de acordar nos teus cabelos.

Em ti qualquer manhã se faz repleta...
Pois busca nos teus olhos tons azuis,
Os pássaros do bosque fazem festa
Ao louro alvorecer que em ti reluz.

Estão os girassóis adormecidos
Enquanto um arrebol luzir despido
Na tímida manhã que tens no colo.

O dia necessita que despertes...
Pedindo que, divina, tu ofertes
A luz que dorme dentro dos teus olhos.

Em ti um sol rebelde se dissolve
Brilhando delirante em teus cabelos,
Cativa claridade em pele e pêlos
Que em pálidos relâmpagos te envolve.

O sol que vive em ti possui tal zelo,
De forma que te segue onde te moves
Pois, mesmo, nesses dias quando chove,
Na luz do teu olhar irás contê-lo.

Há tanta luz em ti que, na penumbra,
Até o teu espelho se deslumbra
Corado por sublimes arrebóis...

Eu não sei se és mulher ou querubim,
Só sei que quando passa nos jardins
Tu causas frenesi nos girassóis.


10 - AI – AI – AI
Autor: Tadeu Martins
Intérprete: Delci Oliveira - Amadrinhador: Edilberto Bérgamo

Do meu repertório
Não passa de um assobiozinho vaneirado

A motivação por esse balanço
Devo ao meu dedo polegar dormindo da mão direita
Que tive no balancim da porteira.

Fui topado por esta dor sem ensaios.

Ao empurrar a perna no dito cambão
O fiel de arame torcido mastigou meu dedo
E para não dastabocar fieiras de maldizeres
Sai contorcendo esta vaneirinha dolorida:

“Hai-hai-hai-hai!
Ai-ai-ai...
Hai-hai-hai…Hai-hai-ai!...” (*)

A intimidade desse assobio foi ao osso.

Música de baile com briga.

Vi uma marca do Tio Bilia
Comendo o dó da minha mão.

Tio Bilia era um tocador de botão.
Encantava aniversários
E o rouxinol da sua gaita tinha muito saber.

E a minha dor toca “Chimanguinha” dele.

Os nossos bailes estão ouvindo até hoje as mãos do Tio Bilia
Mas cravadas no meu dedo têm umas formigas.

(Como dizia o pesquisador Chico Aripuca:
“O melhor amigo da música é o dedo.
Tirando de pauta fica sonorista
Tirando de dedo sai um solão”).
Se uma ópera
Entrasse assobio adentro
Virava fuga de condolência.
No ano 1000 o Maestro Guido
Inventou DO RE MI FA SOL LA
Porque o SI chegou atrasado?
Para depois doer em si o acontecido.

(O SI tocou para mim hoje
Do meu dedo no balancin da porteira ).

Curioso é que a música limpa
Qualquer dor fulgurante.

Por isso um ato de fé a música
Alimenta-se pelo amor de Deus.

Portanto
Meu assobiozinho sincopou uma
harmonia enferma.
Foi mesmo um solo de rumino
Com trechos de xingada musical
Para que o fiasco se amansasse.

O estranho é que ressoa no pé
(fiquei rengo).

Deslindei o dia
Que até feito o mate dói excesso.

Daí que carrego sobre a mão
Esta dor entrouxada de arnica com
cachaça
convalescendo meu ai-ai-ai.

*********
(*) – NOTA DO AUTOR: O trecho grifado
representa o assobio da vaneira.

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